Rapaz tem BSE há um ano

Era uma questão de tempo. A variante humana da doença das vacas loucas – a forma humana da encefalopatia espongiforme bovina (BSE) – atingiu um português, mais concretamente uma criança, do sexo masculino, com 13 anos de idade.

Trata-se do primeiro caso em Portugal mas outros mais irão surgir, acreditam especialistas ouvidos pelo CM. A contaminação ocorreu “em 1998 ou 1999” e a suspeita do diagnóstico existe já há um ano.

Neste momento, pondera-se a possibilidade de o doente ser transferido para Inglaterra – país onde surgiu este grave problema – e aí ser acompanhado por especialistas, enquanto a Comissão Europeia estuda um plano epidemiológico.

Dúvidas não existem que a criança, da região Norte do País, ficou contaminada depois de comer carne de vaca contaminada com a BSE. Neste momento, o seu prognóstico “é muito reservado”, diz Francisco George, subdirector-geral de Saúde.

Os primeiros sintomas da doença surgiram há doze meses. Qualquer dúvida que houvesse foi dissipada com o resultado de uma biópsia enviada para um laboratório certificado em Edimburgo, na Escócia.

O resultado positivo chegou há “quatro ou cinco dias”, o que levou as autoridades de saúde portuguesas a notificarem o caso à Comissão Europeia e à Rede de Vigilância Europeia.

“A manifestação clínica da doença surgiu há um ano mas a evidência laboratorial surgiu há poucos dias”, confirma aquele responsável.

CONTAMINAÇÃO

As autoridades têm dificuldade em responder quando terá ocorrido o momento da contaminação. “Sabe-se que o período de incubação do prião [proteína] é de quatro, cinco, seis anos e mais até, é variável, o que nos leva a deduzir que neste caso terá ocorrido antes de 2000”, sublinha o subdirector-geral.

A forma da contaminação da doença “foi por via oral, por consumo de carne contaminada e não por transfusão”, confirma ao CM o neuropatologista do Hospital de Santa Maria, José Pimentel, que acompanha de perto o fenómeno há anos.

A variante da Creutzfeldt-Jakob é transmitida ao homem pelo consumo de carne contaminada pela BSE – bovinos que contraíram a doença pelo consumo de rações contendo restos de animais, transformando estes herbívoros em carnívoros. Este processo acaba por desenvolver a doença no animal, que a transmite ao homem, em especial aos jovens. O problema levou à proibição das rações para os animais, mas este especialista questiona: “As medidas tomadas são cumpridas?”

Quem não tem dúvidas que este é apenas o primeiro caso e que mais irão surgir é o presidente da Associação Portuguesa dos Médicos de Saúde Pública, Mário Jorge. “Claro que vão surgir mais casos, basta passar o período de incubação, para que os sintomas se manifestem.”

Quanto a rastreios, aquele especialista referiu que não é possível “rastrear uma população de dez milhões para uma doença que é extremamente rara”.

Mário Jorge rejeita que haja um risco de saúde pública. Os motivos que invoca são “a raridade da doença, as medidas que já foram tomadas que têm a ver com a proibição dos produtos de origem animal nas rações e abate de animal suspeito.”

Contudo, há medidas preventivas que podem ser tomadas pela população e que passam por “evitar o consumo de carne previamente picada, apesar de teoricamente ser segura. O pior é que há alguns anos era hábito dar mioleira às crianças, por ser um alimento nutricional muito rico”.

Por enquanto não há tratamento nem vacinas para esta doença, mas há uma esperança. O neuropatologista José Pimentel confirma que algumas “drogas estão a ser experimentadas” (ver texto, ao lado, ‘Esperança de tratamento’).

ESPERANÇA DE TRATAMENTO

Uma nova descoberta acerca das causas da doença das vacas loucas e da sua equivalente humana pode ajudar a prevenir ou mesmo dar origem a tratamentos. Cientistas norte-americanos identificaram um mecanismo que parece ser essencial ao alastramento dos priões anormais que acabam por devastar o cérebro, fornecendo pistas que podem vir a ser usadas em terapia. Os resultados da investigação, publicados na semana passada na revista ‘Science’, sugerem que o tratamento é possível se se criar uma droga que interfira no processo de fixação dos priões nocivos às membranas das células.

DEZASSEIS NOVOS CASOS NOS PRIMEIROS SEIS MESES

Foram detectados em Portugal 16 casos de BSE nos primeiros três meses de 2005, com especial incidência no Norte do País, zona de onde é originária a criança suspeita de ter contraído a variante humana da doença, apurou o Correio da Manhã. Segundo Agrela Pinheiro, director-geral de Veterinária, “estes números mostram que a incidência da doença está a baixar no nosso país, tendo-se atingido o número de 98 casos por um milhão, o índice mais baixo desde sempre”. Durante o ano 2004 foram identificados 91 animais infectados e em 2003 foram eliminados 133. “Portugal tem hoje um dos sistemas mais completos de restreamento da BSE. Temos aumentado todos os anos o número de animais analisados”, acrescentou aquele responsável.

Actualmente, praticamente todos os bovinos com mais de 30 meses são sujeitos a testes de despistagem da BSE. Para além destes testes, os materiais considerados de risco (cabeça, espinal medula, mioleira, baço e intestinos) são eliminados do consumo, sendo destruídos.

“Hoje é impossível que um animal contaminado com BSE entre no consumo”, acrescentou Agrela Pinheiro, referindo que não há necessidade de reforçar o esquema que está montado pelas autoridades.

Para a Associação dos Comerciantes de Carne “ainda é prematuro fazer qualquer comentário”. Jacinto Bento, responsável da associação, diz que a “carne portuguesa é a mais segura do Mundo”, e remete para o comunicado da Direcção-Geral de Saúde, onde se diz não haver qualquer perigo para a saúde pública.

“SERIA UM MILAGRE SE NÃO SURGISSEM CASOS”

António Campos, ex-eurodeputado socialista.

Correio da Manhã – Passou anos a alertar o País para a eventualidade da transmissão desta doença. Sente-se impotente por não lhe terem dado ouvidos?

António Campos – É verdade que me chegaram a acusar de louco, que quem andava louco era eu, não as vacas. Aliás, um colega meu de partido [ex-ministro da Agricultura Gomes da Silva], na altura até se dispôs a comer mioleira no Luxemburgo, um gesto que considero muito grave.

– Por que acha que Portugal não escapou à transmissão da doença?

– Se isso acontecesse seria um milagre de Fátima.

– Por que diz isso se nem todos os países europeus registaram casos de doentes?

– Porque Portugal era o segundo país da União Europeia, logo a seguir ao Reino Unido, com o maior número de animais contaminados pela BSE e seria realmente um milagre de Fátima se não surgissem também cá doentes.

– A probabilidade de isto acontecer era, então, grande?

– Claro, até porque entre 1992 e 1998 andei a alertar Portugal para este gravíssimo problema, porque vi as dezenas de jovens que morreram no Reino Unido e em Portugal não se tomaram medidas. Só em 1998 é que proibiram cá as rações com produtos animais.

– Acredita que este é o único caso ou podem surgir mais?

– É óbvio que vão aparecer mais casos de doentes, é só uma questão de esperar que o período de incubação passe e os sintomas comecem a surgir.

– Como os Governos não lhe deram ouvidos, não se tomaram medidas atempadas em Portugal para evitar animais contaminados?

– Exacto. Porque há muitos interesses neste sector, basta dizer que a produção de carne é um dos sectores mais lucrativos, envolve muito dinheiro.

– Mas por que é que os produtores dão rações contaminadas aos animais?

– Porque as rações são muito mais baratas e ao produtor interessa o lucro.

Fonte: Correio da Manhã

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