Fome: Etanol passou de herói a vilão em pouco mais de nove meses

No início de Julho do ano passado, o etanol brasileiro foi a grande estrela, numa conferência internacional de dois dias, organizada pela União Europeia, em Bruxelas.

Visto como herói na luta contra o aquecimento global, a conferência sobre etanol reuniu o primeiro-ministro português e os presidentes brasileiro, Lula da Silva, e da Comissão Europeia, Durão Barroso.

O objectivo foi lançar o debate sobre o desenvolvimento de um mercado internacional de produção e comércio de combustíveis alternativos ao petróleo, com a meta de substituir 10 por cento do consumo europeu, até 2010.

Quatro meses antes da conferência em Bruxelas, Lula da Silva, que se transformou numa espécie de símbolo internacional do etanol, havia recebido uma visita inédita do colega norte-americano.

George Bush quis conhecer de perto a experiência brasileira, e ouviu de Lula da Silva que a parceria entre o Brasil e os EUA para estimular a produção de etanol representava “o grande desafio energético do século XXI”.

“Não será apenas uma parceria económica entre Brasil e EUA. A estreita associação para produção do etanol possibilitará a democratização do acesso à energia”, afirmou Lula da Silva, ao fim do encontro.

No início de Abril, pouco mais de nove meses depois da conferência de Bruxelas, a análise começou inverter-se, e o etanol transformou-se de herói em vilão da alta do preço internacional dos alimentos.

O argumento é que a utilização de culturas tradicionais, como milho e trigo, e de vastas áreas cultiváveis na produção de biocombustíveis têm causado um aumento sem precedentes dos preços dos alimentos.

O relator da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Direito à Alimentação, Jean Zigler, foi o primeiro a condenar a transformação de alimentos em combustíveis, o que classificou de “crime contra a humanidade”.

Ao discurso de Zigler, seguiram-se vozes como a do presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, e do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn.

Hoje mesmo, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, anunciou que as Nações Unidas decidiram criar uma célula de crise para responder aos problemas alimentares mundiais causados pela subida dos preços.

A medida foi anunciada numa conferência de imprensa em Berna, onde Ban Ki-moon e os dirigentes de 27 agências e organismos da ONU estão reunidos à porta fechada desde segunda-feira para delinear um plano contra a crise provocada pelo aumento do preço de produtos alimentares.

Por sua vez, o director do Banco Mundial, Robert Zoellick, garantiu que “as próximas semanas serão críticas” e afirmou que a instituição que lidera planeia criar um fundo para financiar os países mais pobres e ajudá-los nas respectivas agriculturas.

A semana passada, o Programa Alimentar Mundial (PAM) advertiu que a subida do preço dos produtos alimentares constitui o maior desafio da sua história, um “tsunami silencioso” que pode ameaçar de fome dezenas de milhões de pessoas.

Segundo a directora do PAM, Josette Sheeran, as reservas de alimentos no mundo estão ao nível mais baixo dos últimos 30 anos devido ao aumento incessante dos preços no mercado mundial.

Antes do início dessa ofensiva contra os biocombustíveis, um dado divulgado em Janeiro, já havia deitado por terra o argumento do Governo brasileiro de que a produção de etanol não ameaçava a Amazónia.

Em 2007, Lula da Silva comemorou, durante a Assembleia Geral da ONU sobre alterações climáticas, a diminuição de 25 por cento da desflorestação, entre Agosto de 2005 e Julho de 2006.

Imagens de satélite mostraram, entretanto, que a desflorestação da Amazónia voltou a ganhar um ritmo “nunca antes visto”, no segundo semestre de 2007, após três anos consecutivos de diminuição.

Para os ambientalistas, os dados confirmam a tese de que a utilização de pastagens para o plantio de cana-de-açúcar, base da produção de etanol, tem deslocado os rebanhos bovinos para a Amazónia.

Historicamente, sempre que os preços da soja e da carne bovina aumentam no mercado internacional há uma intensificação da destruição da maior floresta tropical do mundo.

A recente ofensiva contra os biocombustíveis levou o Governo brasileiro a adoptar um discurso mais duro em defesa do etanol brasileiro.

No início, Lula da Silva chegou a dizer que o problema mundial não era a diminuição da oferta de alimentos, mas a falta de renda das populações pobres para adquirir os produtos.

Em recente viagem à Holanda, mudou o tom e disse que a subida dos preços dos alimentos era causada pelo aumento do consumo por parte da população pobre, nomeadamente da China e da Índia.

Na semana passada, pela primeira vez, classificou o programa norte-americano de produção de etanol a partir do milho de “equívoco” e disse que as críticas ao etanol são “falácias” movidas por interesses comerciais.

Para tentar reverter o jogo a favor dos bicombustíveis junto à opinião pública internacional, o Governo brasileiro planeia organizar uma conferência, em Novembro, em São Paulo.

A ideia é discutir as vantagens e desvantagens dos combustíveis alternativos de “forma racional”, segundo disse o presidente.

Lula da Silva também participará da próxima reunião da Organização para Agricultura e Alimentação (FAO), órgão da ONU para combate à fome, em Roma.

Outra iniciativa do Governo brasileiro será a contratação de uma empresa internacional de relações públicas para a conquista da opinião pública.

O objectivo será divulgar trabalhos de especialistas brasileiros, em publicações internacionais, mostrando a diferença entre o etanol produzido no Brasil e nos demais países.

Um dos dados é que as plantações de cana-de-açúcar destinadas à produção de etanol ocupam apenas um por cento da área total agricultável do Brasil.

Apesar de ocupar 3,6 milhões de hectares, de um total de 355 milhões de hectares, a produção de etanol é suficiente para abastecer metade do consumo de combustível dos automóveis.

Os Estados Unidos, por seu turno, ocupam quatro por cento de sua área agricultável com plantações de milho destinadas à produção de etanol, mas produzem apenas dois por cento do total do consumo.

Essa diferença é porque a produtividade da cana-de-açúcar, na produção de etanol, é mais de duas vezes superior à do milho.

Outro argumento a favor do etanol é de que a safra brasileira de grãos tem registado recordes sucessivos de produção, nos últimos anos, apesar do aumento da produção de etanol.

Ou seja, as lavouras de cana-de-açúcar não estão a tomar o lugar dos cultivos tradicionais de alimentos, segundo a estatal Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

A mais recente projecção oficial indica que a produção agrícola brasileira aumentará 6,8 por cento este ano, na comparação com 2007, para 140,77 milhões de toneladas, o maior valor de sempre.

A contra-ofensiva do Governo brasileiro incluirá ainda a criação do chamado “selo verde”, uma espécie de garantia de que o etanol não causou danos ao meio-ambiente.

O certificado, concedido pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro), garantirá também a não utilização de mão-de-obra escrava, ainda comum no interior do país.

O governo vai criar também um zoneamento ambiental para disciplinar as plantações, determinando as áreas onde não será permitido o cultivo de cana-de-açúcar.

A prioridade será plantar cana-de-açúcar apenas em áreas de pastagens, afastando definitivamente assim um possível avanço na Amazónia, como temem os ambientalistas.

O governo quer deixar claro que o programa de produção de etanol, o chamado Proalcool, foi criado em 1975, portanto muito anterior em sem qualquer relação com crise dos alimentos.

Na época, o Brasil importava grande parte do petróleo que consumia e o Proalcool foi uma forma de diminuir as despesas com as importações.

Actualmente, mais de um quarto do total da frota brasileira de 20 milhões de veículos utiliza o etanol, disponível aos consumidores em todas as 35.000 estações de combustível espalhadas pelo país.

Os investimentos no sector deverão ascender a 14 mil milhões de euros, com a construção e ampliação de 86 unidades, nos próximos anos, no Brasil, o que duplicará a produção de etanol.

O Brasil e os Estados Unidos são os dois maiores produtores de etanol (responsáveis por cerca de 75 por cento da produção mundial), seguidos pela China, Índia e França.

Fonte: Agroportal

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