Tributação dos produtos alimentares “deve ser inteligente”

A taxa de 20 por cento de IVA sobre os cereais de pequeno-almoço, contrariamente aos 7 por cento praticados em Espanha, além de “discriminatória” face aos refrigerantes e às batatas fritas, por exemplo, é “uma contradição” face aos pressupostos da própria legislação, afirma o director-geral da Nestlé.
Questionado durante uma visita à fábrica de Avanca, uma das sete fábricas que a multinacional suíça possui em toda a Europa especializadas em cereais, António Reffóios foi contundente: “Quando se faz uma legislação em que o principal critério para classificar os produtos é o da acessibilidade e da importância para a alimentação das pessoas, é verdadeiramente difícil de aceitar que os cereais paguem 20 por cento de IVA e as batatas fritas e os refrigerantes apenas paguem 5 por cento”.

Não precisamos de ir mais longe para estabelecer comparações. Entremos, um instante que seja, em Espanha, país onde, na opinião de António Reffóios, se resolveu «de forma inteligente» a tributação fiscal quanto aos produtos alimentares e às bebidas, taxando-os, a todos, sem excepção, em 7 por cento de IVA. E há países, acrescenta, onde a taxa é «zero ou pouco mais do que zero».

Regressados ao nosso Portugal, país onde «um prato de Nestum ou uma qualquer refeição de cereais de pequeno-almoço custa metade do preço de um café», diz o director-geral da Nestlé que é «verdadeiramente difícil de aceitar» que refrigerantes ou pacotes de batatas fritas, por exemplo, sejam taxados a 5 por cento quando os cereais de pequeno-almoço, segmento em que a Nestlé se orgulha de manter a liderança, conheçam a taxa mais elevada de IVA (20 por cento).

Uma discrepância tão mais difícil de explicar quando o Nestum com mel, uma das categorias do portefólio da Nestlé, por ser em flocos, é taxada à taxa máxima (20 por cento), mas em que o Nestum com arroz, outra das suas referências, por ser farinha, é taxada à taxa mínima (5 por cento).

«Isso é uma via-sacra», ironizou António Reffóios. O tema foi já, aliás, motivo de «não sei quantas petições» pelos responsáveis da Nestlé junto de vários governantes, sem sucesso. Daí que continue a ser «irrealista» esperar por novidades positivas no próximo Orçamento de Estado que o Governo com os partidos está a preparar.

«O país devia criar condições para ser auto-suficiente em cereais»
A par da diferenciação fiscal nestas categorias de produtos, o director-geral da Nestlé mantém as queixas, já antigas, quanto à continuada dependência de Portugal na produção de cereais. Reconhecendo, muito embora, que a Nestlé ainda consegue comprar dentro de portas «entre 60 por cento e 70 por cento» da matéria-prima transformada na fábrica de Avanca (que rendem só naquela unidade 70 milhões de euros e mais de 15 milhões de embalagens anuais, 45 por cento das quais para exportação), António Reffóios lança críticas.

«Os cereais são um factor indispensável na alimentação» e o país devia «criar condições para que Portugal fosse auto-suficiente» na produção a este nível. Para mais porque é um produto «riquíssimo do ponto de vista nutricional», razão por que «temos de nos questionar sobre o que é possível fazer para fechar este «gap», de maneira a sermos auto-suficientes na produção de cereais».

Satisfeito com os investimentos na casa dos três milhões de euros realizados naquela unidade no último ano e o reforço em 60 por cento na capacidade de produção de cereais de pequeno-almoço que vai conseguindo apenas importando para Avanca entre 30 por cento e 40 por cento dos cereais de que precisa, o director-geral da Nestlé não se atreve, porém, a dar conselhos ao Governo sobre como aumentar a produção de cereais em Portugal. «Não vou tão longe», disse, lembrando que, «se tanta gente que está ligada a este sector nunca conseguiu [resolver o problema] em tantos anos, não vou ser eu que vou ter esse atrevimento».

Questionado sobre se, chegados a 2010, faz sentido falar de soberania alimentar, António Reffóios não tem dúvidas: «Acho que, nos dias de hoje, e como sempre, a questão da alimentação é fundamental. E é óbvio que quanto menos dependentes formos melhor.» É que, «da mesma maneira que lutamos para sermos o menos dependentes possível de aspectos que são importantes para o bem-estar das pessoas, como sejam, por exemplo, as fontes de energia, o mesmo princípio e a mesma lógica deviam ser aplicadas à questão alimentar».

«Autoridade da Concorrência quer clarificação do ponto de vista da regulamentação»
O mês de Janeiro de 2010 trouxe novidades da Autoridade da Concorrência (AdC) para o sector alimentar. Numa audição na Assembleia da República no início deste mês, Manuel Sebastião, presidente da AdC, divulgou resultados preliminares de uma investigação ao sector, a concluir no segundo semestre de 2010, e que tem como objecto principal as relações comerciais entre a grande distribuição agro-alimentar e os seus fornecedores. E é entre eles que também se encontra a Nestlé, que factura só em Portugal cerca de 572 milhões de euros.

Questionado sobre o tema, o director-geral da empresa em Portugal mostra-se inteirado e interessado na matéria. E não lamenta, como outros o fizeram, a morosidade na apresentação de conclusões. «Esta é uma matéria complexa», realça António Reffóios, notando que «uma das coisas mais difíceis» de que se apercebeu neste processo foi a «dificuldade na recolha de dados» por parte da AdC, que «deveria ser mais fácil» se houvesse já informação estatística em carteira.

Notando tratar-se de «um bom esforço da AdC», António Reffóios assume ter feito «uma leitura cuidadosa» daquele primeiro relatório, dele tendo tirado «um bom retrato de alguns aspectos desta realidade, que é muito complexa, mesmo a nível europeu». É que «algumas destas questões são hoje transversais» a toda a Europa e, para António Reffóios, a AdC, «muito mais do que identificar situações passíveis de serem sancionadas, está interessada em criar um clima propício a que haja uma clarificação do ponto de vista da regulamentação» em Portugal.

Apoio do Proder à produção de cereais está «praticamente paralisado»
Numa conjuntura em que, de acordo com as previsões do Instituto Nacional de Estatística (INE), o valor da produção de cereais em Portugal relativa a 2009, nomeadamente o trigo, deverá apresentar uma queda de 40 por cento face ao período homólogo anterior, em resultado de uma descida de 23 por cento do volume produzido e de uma quebra de 21,4 por cento no preço, a presidente do Observatório dos Mercados Agrícolas explica que Portugal deveria incentivar a produção a este nível.

E questionada pela «Vida Económica» sobre se o Proder [Programa de Desenvolvimento Rural] está vocacionado para apoiar a produção agrícola, nomeadamente a plantação de cereais, Maria Antónia Figueiredo foi bem clara: «o drama do Proder é que o seu eixo 1, o que deveria facultar o apoio à produção e à competitividade, tem estado praticamente paralisado». O que acentua a dependência de Portugal face ao exterior a este nível.

Afirmando não ter dados que lhe permitam «confirmar ou infirmar as previsões do INE», a presidente do Observatório lembra, contudo, que «as oscilações da produção física fazem parte da rotina da agricultura, devido, essencialmente, a factores climáticos, os quais são consideráveis nas regiões de influência mediterrânica». Pelo que é de prever que o INE vá «corrigir» tais previsões.

A verdade, diz Maria Antónia Figueiredo, é as quedas nos preços em 2009 se verificaram «em todos os produtos, constituindo como que um regresso à normalidade face à situação hiper-altista ocorrida nos anos de 2007 e 2008, que ficou conhecida como a crise dos mercados agro-alimentares». Na verdade, diz a presidente do Observatório, «todas as previsões dos organismos internacionais, da FAO à OCDE ou à União Europeia, tinham alertado que, passada que fosse essa conjuntura de excepcional euforia, os preços voltariam a baixar, ainda que com tendência a situar-se num patamar relativamente superior».

E foi isso que veio a acontecer, diz Antónia Figueiredo, embora o «patamar de descida» tenha acabado por ser «mais pronunciado do que o esperado, devido à crise económica que inibiu temporariamente o crescimento da procura nos países emergentes, especialmente da Ásia».

Questionada especificamente sobre a produção de trigo, em que Portugal, contrariamente à do arroz, é altamente deficitário, Maria Antónia Figueiredo aponta as causas mais prováveis. «Portugal nunca teve condições agroecológicas para a produção de trigo em condições de razoável competitividade», lembrando «a campanha do trigo dos governos do Estado Novo que, quando tentaram tornar Portugal auto-suficiente, plantando trigo em solos sem profundidade e fertilidade suficientes para a cultura, tal criou danos ambientais com a erosão e esqueletização de solos que ainda hoje perduram».

Por outro lado, refere, «a produção em regadio tem custos que, na maioria dos casos, não são compensados pelas produtividades, as quais continuam a ser muito pequenas em comparação com as dos grandes produtores comunitários com solos profundos e água da chuva regular ao longo do período de crescimento», como é o caso da França, Alemanha ou Reino Unido.

A somar a tudo isto, está a «pronunciada baixa de preços desde a reforma da PAC de 1992», que levou a que os preços europeus dos cereais se «nivelassem com os do mercado mundial, onde só os produtores mais eficientes podem sobreviver e expandir a produção». Em todo o caso, diz a presidente do Observatório português, e para mais com os incentivos do Proder, «bem mais poderia ser feito no nosso país, designadamente através da investigação de variedades com melhor desempenho nos sistemas de sequeiro».

Fonte: Anil

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