Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, de 5 de Agosto

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Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008

PÁGINAS DO D.R. : 5235 a 5254

Processo n.º 1008/07 – 5.ª Secção

Recurso extraordinário n.º 1008/07.

Comum singular n.º 21/03.1PEVRL de Vila Real.

Recurso ordinário n.º 4664/06-1, da Relação do Porto.

Recorrente: Ministério Público.

Recorrido: Carlos Manuel Cunha Silva.

1 – O acórdão fundamento. – Em 18 de Outubro de 2006, a Relação do Porto (i), no recurso n.º 3539/06-4, «entendeu fundada uma interpretação que não atribuísse ao n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 uma função vinculativa, que arredasse do ilícito de mera ordenação social as situações de consumo e de aquisição ou detenção de droga para consumo em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, mas lhe reservasse uma função meramente indicativa ou orientadora».

2 – O acórdão recorrido. – Porém, a mesma Relação (ii), em 22 de Novembro de 2006, veio a sustentar, no recurso n.º 4664/06-1, que «o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93 terá sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000».

3 – O recurso extraordinário.

3.1 – O MP (iii), ante tal «oposição de julgados», deduziu, em 15 de Dezembro de 2006, «recurso extraordinário», propondo que o Supremo assente jurisprudência no sentido de que «a aquisição ou detenção de estupefacientes para consumo próprio de uma quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante o período de 10 dias integra a contra-ordenação prevista no artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro».

3.2 – Em 17 de Maio de 2007, o Supremo Tribunal de Justiça, reconhecendo a invocada «oposição de julgados», admitiu o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência oposto em 15 de Dezembro de 2006, pelo MP, ao acórdão da Relação do Porto que, em 22 de Novembro de 2006, decidira, com trânsito em julgado, que «o disposto no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93 teria sempre a sua aplicação desde que o estupefaciente destinado ao consumo seja de quantidade superior à prevista no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000».

3.3 – Dos sujeitos processuais interessados, notificados para apresentarem, por escrito, as suas alegações (artigo 442.º, n.os 1 e 2), só o MP (iv) as apresentou, promovendo, em 25 de Junho de 2007, que se uniformizasse jurisprudência no sentido de que «a detenção ou aquisição de produto estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante 10 dias, integra o crime previsto e punido no artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro»:

«Crê-se que será de toda a conveniência, para já, reflectir por um lado no tratamento dispensado, no âmbito do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, à problemática do consumo de estupefacientes, primeiro em si mesmo e por referência ao tráfico objecto de previsão nos artigos 21.º, 25.º e 26.º e depois por confronto com o ora preconizado na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, e, por outra via, ponderar as razões de ordem estratégica que, na luta contra a droga, estiveram na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, e de que é dado o devido esclarecimento na Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99 (Diário da República, 1.ª série-B, n.º 122, de 26 de Maio de 1999), ao abrigo da qual foi aprovada a Estratégia Nacional da Luta contra a Droga (v). Nesta perspectiva, caberá ter presente que no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro – estabelecendo-se claramente a distinção entre o ‘tráfico e outras actividades ilícitas’ e o ‘consumo’, traduzida na interligação que o artigo 21.º fazia com o artigo 40.º e definindo-se como crime quer uma quer outra das condutas -, contanto que se apurasse que o cultivo, a aquisição ou a detenção de estupefaciente eram para consumo próprio, apartada ficava desde logo a possibilidade de uma dessas actividades vir a ser punida como tráfico, qualquer que fosse a quantidade da droga detida, cultivada ou adquirida. Quer-se com isto dizer que, ao invés do que viria a suceder com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, não estabelecia qualquer limite quantitativo para efeitos de definição de uma dada conduta como consumo e como assim para distingui-la do tráfico. Desta sorte, e como bem decorre do estatuído no n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (que prevê e sanciona com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias o cultivo, a detenção, a aquisição de plantas, substâncias ou preparações em quantidade que exceda a necessária para consumo médio individual durante o período de três dias), não é a quantidade mais ou menos elevada em causa que exclui a sua aplicação, do mesmo passo que não é a quantidade mais ou menos diminuta em presença que fará afastar a aplicação dos artigos 21.º e seguintes, no que ao tráfico diz respeito, se tiver ficado apurado que ao consumo pelo próprio não se destinavam as aludidas plantas, substâncias ou preparações. Algo diversamente, porém, aconteceu com a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que – conquanto não houvesse alterado substancialmente os termos da questão, estabelecendo que o consumo, a aquisição ou a detenção para consumo próprio até determinada quantidade (não excedente à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, artigo 2.º, n.º 2) passariam a integrar mera contra-ordenação – deixou de fora um largo número de condutas até então contempladas no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Condutas que – desde o cultivo para consumo (independentemente da quantidade em causa), objecto de expressa salvaguarda na norma revogatória do artigo 28.º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, até à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de quantidades superiores às referidas no seu citado n.º 2 do artigo 2.º, o cerne da questão controvertida – , se não fossem os termos em que se encontra redigida a aludida norma revogatória do artigo 28.º, todos concordariam que continuavam a ser abrangidas pela previsão do artigo 40.º Feitas estas breves considerações, importa reflectir que, na génese da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (que definiu ‘um novo regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas bem como à protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias, sem prescrição médica’, descriminalizando essas condutas e revogando o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do mesmo diploma, convertendo-as em ilícito de mera ordenação social), ponderaram razões de ordem vária que vão desde a necessidade de o aparelho judicial dever estar afecto ao combate do tráfico de drogas e da criminalidade complexa que lhe anda associada (branqueamento de capitais, associações criminosas, tráfico de armas, corrupção, etc.) e, por via disto, isentá-lo da luta contra outros ilícitos de menor gravidade e relevância como o consumo de substâncias da aludida natureza, que passam pelas ilações a retirar dos desencorajadores resultados obtidos com a criminalização até então feita destas condutas consideradas menos desvaliosas como forma de dissuadir os consumidores de drogas a utilizarem-nas e que desembocam na diferente perspectiva como devia ser encarada a problemática do consumo e o drama do consumidor: mais um doente a reclamar medidas de protecção sanitária e social, do que um criminoso. E, não obstante este evidente e aliás confessado propósito descriminalizador, benfazejo para o consumidor (vi), face ao que decorre quer da Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio, pela qual a Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, foi aprovada, quer do próprio texto desta, dúvidas não subsistem de que com o novo regime jurídico visou o legislador não legalizar de todo o consumo das referidas substâncias mas, apenas e tão-só, descriminalizar as situações que, com ele relacionadas, considerava revestirem-se de menor gravidade, como, de resto, foi profusamente proclamado e com linear nitidez flui do que ficou estatuído, primeiro nos artigos 1.º e 2.º e, depois, no artigo 28.º da mesma Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. Feito que fica este apontamento e não perdendo de vista a questão concreta em análise [o modo como enquadrar sob o ponto de vista jurídico – isto, naturalmente, para o caso de se considerar que a entrada em vigor da lei nova não comprometeu tal possibilidade – as condutas consistentes na detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo próprio que, antes abrangidas pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, escaparam à sua directa previsão, por a quantidade em causa exceder a necessária para consumo médio individual durante 10 dias (n.º 2 do artigo 2.º do mesmo diploma legal)], importará, então e na sequência de tudo quanto mais atrás se aduziu, expor as razões por que se entende que a verificada oposição de acórdãos deverá ser resolvida nos termos do decidido no acórdão recorrido. Porém, para cumprir tal desiderato, importará desenvolver um esforço para interpretar as normas convocadas para o efeito (máxime, a norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro). Esforço de interpretação que – passando por chamar à colação o artigo 9.º do Código Civil, que regula genericamente a matéria relativa à interpretação da lei, tendo por fio condutor a ideia de que ela deverá reconstituir, a partir dos correspondentes textos, o pensamento do legislador, possuindo como parâmetros a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada e tendo como seus limites os princípios da legalidade, que veda o recurso a analogia, e da tipicidade – há-de permitir descobrir o sentido que se encontra por detrás da respectiva expressão e, dentro das suas significações possíveis, eleger a que, coincidente com o que se presume ter sido a vontade real do legislador, constituirá a verdadeira e decisiva, no dizer de Pires de Lima e Antunes Varela (vii). E não deixando de ser certo que, em sede de interpretação jurídica, o texto da lei constitui importante elemento de interpretação, não é, todavia, o elemento literal o único nem porventura o mais valioso, devendo por isso e a par dele curar de apelar-se ao elemento lógico-racional, conjugando-o com os elementos histórico e sistemático (viii). Fazendo então uso deste indispensável instrumento de trabalho que constitui a interpretação da lei, cumpre desde logo observar que, se as normas dos artigos 2.º, n.os 1 e 2, e 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, e 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, fossem interpretadas no seu sentido puramente literal, a conclusão a extrair seria, efectivamente, a de que a detenção ou a aquisição, para consumo próprio, de estupefaciente em quantidade superior à necessária para consumo individual durante 10 dias não havia de ser punida quer pelo n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (revogado) quer pelo artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (por via da limitação negativa feita no n.º 2 do mesmo normativo). Porém, recorrendo a uma interpretação teleológica e de cariz objectivo e fazendo intervir o elemento lógico-racional de interpretação em conjugação com o elemento histórico, uma solução do tipo não poderá deixar de ser entendida como ilógica, incongruente, incompreensível (ix). Na realidade, não postergando que na fixação do sentido e do alcance da lei o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil), seria carecido de qualquer sentido lógico que o legislador punisse (n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro) a conduta menos grave (o consumo, a aquisição e detenção para consumo próprio de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas em quantidade que não excedesse a necessária para consumo médio individual durante 10 dias) e despenalizasse o comportamento mais desvalioso. De facto, e como com inteira razão argumentam os que recusam uma solução do género (x), resultaria de todo ininteligível que a detenção de doses para 10 dias constituísse contra-ordenação e para 11 dias não integrasse qualquer infracção, quando é certo que quem detém 11 doses também detém 10 (11 engloba 10 e sobra 1). É que uma solução deste tipo, além de consubstanciar um absurdo jurídico e configurar uma situação de manifesta e flagrante injustiça, sempre representaria uma traição ao espírito do legislador e aos fins de política criminal que, tendo estado na génese da criação de um novo regime jurídico para o consumo, não visou de todo em todo legalizá-lo (xi) mas tão-só descriminalizar as condutas que se revestissem de menor gravidade. E, a ser assim, como indefensável há-de ter-se a solução que, sufragada pelos (poucos) que, considerando tratar-se de uma verdadeira e pura lacuna sancionatória (xii) (insusceptível de integração por proibição do recurso à analogia – n.º 3 do artigo 1.º do Código Penal – ) a falta de directa previsão na Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, da conduta de quem detenha ou adquira, para consumo próprio, estupefaciente em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, pugnam pela sua descriminalização. Como indefensável se tem igualmente – ora, por razões diametralmente opostas – a solução proposta por aqueles outros que, ainda por aplicação literal do citado artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, entendem ser de remeter para a norma fundamental do artigo 21.º (ou do tipo privilegiado do artigo 25.º ou até mesmo do artigo 26.º) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o encargo de sancionar as condutas de aquisição ou detenção, para consumo próprio, antes abrangidas pelo artigo 40.º e que, pela quantidade do produto em causa, não se encaixam na previsão do novo diploma legal. E isto porque a uma solução do tipo se é certo que, desde logo, se opõem as finalidades visadas pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro – uma lei benfazeja para o consumidor, surgida no âmbito de um movimento de despenalização das condutas menos desvaliosas de consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas e imbuída da noção do ‘consumidor-doente’ a reclamar, mais do que censura legal, a sua inclusão em programas virados para o tratamento e integração social – na medida em que, na prática e contra toda a lógica, tal traduzir-se-ia em transmudar um ‘doente’ em traficante (xiii) por via de mais uns gramas de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas que porventura detivesse ou adquirisse para consumo próprio, não menos verdade é que essa solução, desproporcionada e aberrante [à luz quer do novo diploma quer da própria Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (que, distinguindo claramente o tráfico e outras actividades ilícitas do consumo, não transformava um crime noutro pelo mero facto de o agente deter maior ou menor quantidade de produto)] importaria ainda a violação dos princípios da culpa e bem assim da necessidade (ou da justa medida) e da proporcionalidade (ou da proibição do excesso) das penas (xiv), para além de que, sob o ponto de vista dogmático, só com manifesta afronta ao princípio da legalidade e consequente proibição da analogia (xv) e da tipicidade isso seria possível. É que, nos moldes em que se encontra configurado no Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, o tipo base do tráfico de estupefacientes (e quem diz este diz o tipo privilegiado do artigo 25.º ou até mesmo o do artigo 26.º) – com exclusão dos casos previstos no artigo 40.º -, ele não pode aplicar-se às situações em que a substância detida ou adquirida se destina a consumo próprio do agente, qualquer que seja a quantidade em causa. Por outro lado, mal se compreenderia que o simples facto de a quantidade de estupefaciente detido ou adquirido pelo agente, para consumo próprio, exceder o necessário para consumo médio individual durante 10 dias levasse o legislador da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, a transformar o crime de consumo em tráfico quando, expressa e inequivocamente salvaguardando da norma revogatória do artigo 28.º o cultivo – conduta bem mais desvaliosa -, preveniu que ele continuasse a ser sancionado, ainda no âmbito do consumo, como crime e nos termos do preceituado na norma do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. E também indefensável se entende ser a solução avançada pelos que sustentam que a detenção ou aquisição de estupefacientes, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias configura apenas e tão-só um ilícito de natureza contra-ordenacional, previsto e punido pelo artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro. E isto porque começando por uma interpretação puramente literal que se faça do texto da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, maxime do artigo 2.º, com particular enfoque para o seu n.º 2, de constatar impõe-se que a ideia directa e imediatamente apreensível é que o legislador não quis punir como contra-ordenação o agente que detivesse ou adquirisse, para consumo próprio, produto estupefaciente em quantidade que excedesse a necessária para consumo médio individual durante 10 dias. É que se não fosse este o pensamento do legislador então inexplicável, incompreensível, carecida de qualquer sentido sempre resultaria a limitação que no n.º 2 do citado artigo 2.º fez à quantidade que, no seu entender, relevava para efeitos de integração da conduta como ilícito contra-ordenacional. Depois, não deixando certo que em sede de interpretação da lei, não devendo o interprete cingir-se à letra da lei, mas reconstituir, a partir dos textos, o pensamento do legislador, tendo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições em que é aplicada (artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil), privilegiando a interpretação teleológica de cariz objectivo, não perdendo de vista que, na fixação do sentido e alcance da lei, o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir em termos adequados o seu pensamento que, na letra da lei, há-de ter em mínimo de correspondência verbal, ainda que de forma imperfeita, por irrazoável tem-se que ao fazer aquela limitação ao consumo dos 10 dias pretendesse o legislador dizer coisa diametralmente oposta, isto é, que excedesse não aquele limite a quantidade de estupefaciente detida ou adquirida para consumo próprio, a conduta do agente sempre enquadraria mero ilícito contra-ordenacional. Ao invés, porém, numa interpretação, quer literal quer teleológica de cariz lógico-racional que se faça do referenciado texto legal, tudo parece indicar que este não teria sido necessariamente o pensamento do legislador, pois se assim não fosse não teria procedido à indicação de qualquer limite, relegando para o intérprete o encargo de optar e decidir se estava na presença de um mero ilícito contra-ordenacional ou de um crime (xvi). E, contra esta perspectiva de ver as coisas, não se oporão a intenção do legislador e os fins da política criminal que o teriam levado a conceber um novo regime legal para o consumo. É que, como antes anotado, se a intenção do legislador não foi obviamente a de legalizar o consumo (como bem o demonstra o próprio texto legal), também não foi descriminalizá-lo integralmente, mas apenas naquelas situações que, considerando revestir-se de menor gravidade [tais sejam, as consistentes no consumo, na detenção ou aquisição, para consumo próprio, de estupefaciente em quantidade que não excedesse o limite que fixou no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro], transmudou de crime para ilícito de mera ordenação social. Propósito este bem patente, de resto, na ressalva que, quanto ao cultivo (ainda que para consumo próprio) de substâncias estupefacientes e psicotrópicas, o legislador fez na norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, que, numa óptica mais concordante – julgamos nós – com o que terá sido o seu pensamento, limitar-se-ia a ponderar apenas para as situações ora abrangidas pelo artigo 2.º da citada Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, ficando tudo o mais (designadamente as situações relativas ao cultivo e as não cabimentadas no n.º 1, por via do estatuído no n.º 2 do mesmo artigo 2.º) para o regime previsional do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (xvii). É certo que contra um entendimento do tipo sempre se poderá argumentar que, a suceder assim, então o legislador não precisava de ter formulado nos moldes em que fez a norma do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, já que, por via da incompatibilidade existente entre as novas e as precedentes regras, estas claudicariam tacitamente perante aquelas. Porém, a uma tal crítica poder-se-á, efectivamente (xviii), refutar que, experimentando o legislador necessidade de introduzir uma disposição sobre a revogação do artigo 40.º por forma a salvaguardar a vigência deste quanto ao cultivo, acabou por utilizar uma fórmula ambígua que o levou a dizer mais do que queria e que era tão-só que ficava revogado o artigo 40.º para os casos abrangidos pela nova contra-ordenação. Interpretação (restritiva) esta que, ao invés do que sustentam os que defendem que integra uma mera contra-ordenação a situação prefigurada na questão de direito que se suscita, não acarreta uma ampliação incriminatória, com afectação do princípio da legalidade. Mas isto ver-se-á mais em pormenor já a seguir. Assim, crê-se que a solução da questão controvertida passa por interpretar a norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, com o sentido restritivo de que o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, foi por ele efectivamente revogado, excepto quanto ao cultivo e bem assim na parte em que vai além do estatuído no artigo 2.º da lei (o que vale dizer na parte em que a aquisição ou a detenção, para consumo próprio, exceda o limite definido no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, como condição para que a conduta seja sancionada como contra-ordenação, logo nos termos do n.º 1 do mesmo dispositivo), caso em que a punição do comportamento do agente se fará de acordo com o preceituado no n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. Na verdade, recuperando tudo quanto mais para trás ficou referido e seguindo muito de perto a posição defendida por Cristina Líbano Monteiro (xix) e bem assim o entendimento sufragado nos paradigmáticos arestos deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2003, de 7 de Abril de 2005 e de 16 de Fevereiro de 2006 (xx), crê-se que a solução que se vem buscando para suprir a aparente lacuna (pois disto apenas se trata na medida em que, parecendo embora que não foi regulada pela lei, efectivamente foi, como a interpretação que dela se faça, de acordo com os critérios gerais previstos no artigo 9.º do Código Civil, facilmente o demonstrará) que a situação plasmada na questão controvertida prefigura, só pode passar por aí, de sorte que, no citado dispositivo do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, onde as palavras parecem apontar no sentido de um total desaparecimento do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (excepto no que diz respeito ao cultivo, salvaguardado expressa e inequivocamente na mesma norma revogatória), deve entender-se que ele continua a aplicar-se aos casos da detenção ou aquisição para consumo próprio, não transmutados em ilícito de mera ordenação social, visto ter sido intenção do legislador manter incólume tal segmento previsivo de que decorre que a norma existe, de facto (xxi). Interpretação restritiva que, ao invés do que dizem os que para o caso a criticam, conducente à manutenção da situação anterior (a existente no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro), não consubstancia uma ampliação incriminatória, mediante recurso à analogia e, como assim, não acarreta violação dos princípios da legalidade e da tipicidade (xxii), com assento constitucional (artigo 29.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). De resto, e como com inteira oportunidade, citando Simas Santos e Leal Henriques (xxiii), se refere nos arestos deste Supremo Tribunal de 3 de Julho de 2003, de 7 de Abril de 2005 ou de 16 de Fevereiro de 2006, proferidos nos processos n.os 1799/03, 446/05 e 111/06, todos da 5.ª Secção, a interpretação extensiva ou restritiva da lei penal é admitida no nosso direito. E, como defendem os referidos autores na citada obra e se sufraga naqueles arestos do Supremo Tribunal de Justiça, sendo o ‘sentido literal possível’ dos termos linguísticos utilizados na redacção do texto legal o limite máximo de interpretação da lei penal, e não havendo qualquer espaço a percorrer, por via interpretativa, entre o ‘sentido literal possível’ e o ‘mínimo de correspondência verbal’ a que se refere o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, tem-se igualmente de partilhar do entendimento de que, no caso aqui em análise, esse ‘mínimo de correspondência verbal’ pode ser surpreendido no facto de o legislador não ter revogado totalmente o aludido artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na medida em que, tendo posto a recato da revogação o cultivo para consumo próprio, ‘deixou a porta aberta para uma vigência parcial dessa norma’ (xxiv). […] Daí que – nada obstando a que se proceda a uma interpretação restritiva da norma revogatória do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, no sentido de que o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, foi apenas revogado na parte relativa às situações ora previstas no artigo 2.º daquela Lei n.º 30/2000, mantendo-se no mais em vigor – se entenda que a detenção ou a aquisição de estupefaciente, para consumo próprio, em quantidade superior à necessária para consumo médio individual durante 10 dias, excluída que está da previsão da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, integra o crime previsto e punido pelo artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro.»

4 – A Estratégia Nacional de Luta contra a Droga.

4.1 – A Resolução do Conselho de Ministros n.º 46/99, de 26 de Maio (Diário da República, 1.ª série-B, n.º 122), que aprovou a Estratégia Nacional de Luta contra a Droga «optou pela descriminalização do consumo de drogas e pela sua proibição como ilícito de mera ordenação social, com a consequente alteração (xxv) do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro». «Essa opção respeitou não apenas ao consumo propriamente dito mas também à detenção (posse) e aquisição para esse consumo» (xxvi). Em primeiro lugar, porque se entendeu que «a criminalização e a consequente mobilização do aparelho judicial dev[ia]m estar, sobretudo, ao serviço do combate ao tráfico ilícito de drogas e ao branqueamento de capitais». Depois, como decorrência «do princípio humanista, um dos princípios estruturantes da presente estratégia, que exige o respeito pelos princípios humanistas fundamentais do nosso sistema jurídico, nomeadamente os princípios da subsidiariedade ou ultima ratio do direito penal e da proporcionalidade, com os seus corolários que são os subprincípios da necessidade, da adequação e da proibição do excesso» (xxvii). Em terceiro lugar, porque não se mostraria necessário criminalizar a detenção e a aquisição de drogas ilícitas para consumo «só para viabilizar o combate ao tráfico pelas autoridades policiais», já que «esse propósito fica[ria] integralmente salvaguardado no quadro de um regime sancionador como o ilícito de mera ordenação social» (xxviii). Em quarto lugar, seria desproporcionado representar «a tipificação como ilícito criminal do simples consumo de drogas, bem como da detenção e aquisição de drogas para consumo». Por outro lado, «a opção pelo ilícito de mera ordenação social potencia[ria], pela sua própria natureza, uma mais profunda utilização de certas manifestações do princípio da oportunidade, permitindo introduzir um sistema sancionatório mais flexível com vista a um melhor tratamento processual do caso concreto». Enfim, «a não intervenção do direito penal permitir[ia] criar um espaço próprio para a intervenção de um sistema de controlo administrativo através do ilícito de mera ordenação social e da consequente atribuição de competência para aplicação de sanções e medidas às autoridades administrativas, de modo a favorecer a necessária intervenção das entidades competentes na área da prevenção (primária, secundária e terciária), com ganhos evidentes de eficácia, racionalização e optimização de meios» (xxix).

4.2 – De qualquer modo, «não se trat[ou] de legalizar ou sequer de despenalizar, ao menos no sentido amplo do termo», mas de «de substituir a proibição através de um ilícito criminal pela proibição através de um mais adequado ilícito de mera ordenação social». E isso porque «a prisão ou a multa […] não [vinham] constituindo a resposta adequada ao problema do mero consumo de drogas», além de que a experiência viria revelando «que a sujeição do consumidor a procedimento criminal, com todas as suas consequências, [não] constitu[ía] o meio mais adequado e eficaz de intervenção, seja nos casos de primeiras infracções ou de consumidores ocasionais, para os quais se t[inha] revelado excessivo, e por isso desproporcionado, mobilizar todo o sistema de reacção penal, seja no caso de toxicodependentes, para os quais se dev[ia] privilegiar a prioridade ao tratamento em alternativa à aplicação de sanções» (xxx).

4.3 – Aliás, «no actual contexto, a manutenção de uma proibição constitui[a], todavia, um imperativo […]. Com efeito, sem a proibição legal seria de prever um aumento do consumo, sobretudo entre os menores, decorrente de uma maior acessibilidade e da ausência de um desvalor legal desse consumo». Além de que, «sem a ilicitude da detenção (posse) de drogas resultaria, na prática, gravemente prejudicado o combate ao tráfico». «Em qualquer caso, a previsão de um ilícito sempre se imp[unha] à luz das convenções internacionais, nos termos das quais o Estado Português está vinculado a proibir a detenção e aquisição de drogas ilícitas para consumo».

4.4 – «Assim sendo, o ilícito administrativo constitui[ria] não apenas a solução mais adequada num contexto de proibição do comércio deste tipo de drogas mas também a única alternativa à criminalização […] compatível com as convenções internacionais em vigor.»

4.5 – Não se trata, porém, de o Estado «impor abusivamente aos cidadãos comportamentos saudáveis mas, sobretudo, de, respeitando as convenções internacionais, conservar o desvalor legal que possa dissuadir comportamentos potencialmente prejudiciais para a saúde e a segurança públicas, bem como para a saúde dos menores e, ao mesmo tempo, deixar intocados os mecanismos que permitem às autoridades intervir onde a autoridade dos educadores já não chega e, sobretudo, perseguir eficazmente o tráfico».

5 – A Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro.

5.1 – Nesse objectivo (o de definir «o regime jurídico aplicável ao consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas, bem como a protecção sanitária e social das pessoas que consomem tais substâncias sem prescrição médica» (artigo 1.º, n.º 1), surgiu, em 29 de Novembro de 2000, a Lei n.º 30/2000, que, no seu artigo 2.º, determinou que passassem a constituir contra-ordenação «o consumo, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas referidas no artigo anterior«, sem embargo de continuar a incorrer em infracção criminal, nos termos do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, quem, para seu consumo, cultivasse substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv. Nesse contexto, o artigo 28.º do Decreto-Lei n.º 30/2000 revogou não só aquele «artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo«bem como «as demais disposições que se mostr[ass]em incompatíveis com o [novo] regime».

5.2 – «O diploma começa por uma definição ou qualificação dogmática da conduta que descreve: diz que se considera contra-ordenação tanto o consumo como a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (vulgo, drogas ou drogas ilícitas). Vê-se logo a seguir que a fronteira que separa este ilícito do crime de tráfico deve traçar-se de acordo com dois critérios: o fim do agente (a intenção para além do dolo de destinar aquela quantidade de droga ao simples consumo próprio) e a quantidade de produto (não mais do que 10 doses diárias individuais). Se quiséssemos descrever de outro modo a conduta proibida, poderíamos dizer: quem consumir ou, com intenção de consumir, detiver ou adquirir drogas ilícitas, em quantidade que não exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, praticará uma contra-ordenação.» (Cristina Líbano Monteiro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 11, t. 1.º.) (xxxi)

5.3 – Note-se, porém, que «no projecto que serviu de fonte remota à Lei n.º 30/2000 não se previa nenhum limite à quantidade de droga para consumo, considerando-se simplesmente contra-ordenação a aquisição ou a detenção para o consumo, independentemente da quantidade de droga que estivesse em causa» (xxxii).

5.4 – No entanto, ao corpo do artigo 2.º (do diploma que viria a constituir a Lei n.º 30/2000) foi posteriormente acrescentado um n.º 2, nos termos do qual «a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior» não poderiam, «para efeitos da presente lei», «exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

5.5 – Não houve, todavia, o cuidado (xxxiii) de adaptar a redacção do então já redigido artigo 28.º («São revogados o artigo 40.º, excepto quanto ao cultivo, e o artigo 41.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, bem como as demais disposições que se mostrem incompatíveis com o presente regime») por forma a deixar explícito que a revogação aí consignada deixava intocada a criminalização da aquisição e da detenção para o consumo de substâncias referidas no artigo 2.º em quantidade superior à necessária para «o consumo médio individual durante o período de 10 dias».

5.6 – De qualquer modo, deverá ser esse o alcance a dar ao artigo 28.º quando confrontado com o âmbito («Para efeitos da presente lei») (xxxiv) do «novo» n.º 2 do artigo 2.º: «Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias». Na verdade, se para «para efeitos da presente lei» (xxxv), «a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias», essa restrição – não obstante a sua inserção sistemática – haverá de se repercutir em toda a lei, incluindo o respectivo artigo 28.º (que, ao revogar as «disposições […] incompatíveis com o presente regime», pretenderia, decerto, deixar incólume o artigo 40.º da Lei n.º 15/93 não só «quanto ao cultivo» como quanto à «aquisição e à detenção para consumo próprio» de «substâncias» superiores à «necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»).

5.7 – Com efeito, «julgamos que é possível, sem necessidade de torcer conceitos, encontrar saída para a prisão dogmática em que parece estar metido o intérprete. Para tal, convém adentrarmo-nos não tanto na letra quanto na lógica, na teleologia do regime resultante dos artigos acima citados. […] Parece estar bem longe do espírito (da teleologia) da norma a ideia (a suspeita sequer) de que a teia garantística que forja dê lugar a vazios de punição. Perante isto, está o intérprete obrigado a ‘buscar o direito através da lei’ […], a encontrar na linguagem do texto a forma de não trair o seu significado» (xxxvi).

5.8 – Aliás, «a Lei n.º 30/2000 fornece ao estudioso do direito um bom exemplo do que não deve fazer-se quando se pretende introduzir uma mudança parcelar num todo normativo coerente que já existe». Pois «o que não deve fazer-se é definir tão-só os traços da novidade sem acautelar as zonas de possível sobreposição ou, pelo menos, de necessária fronteira». «Quando – como neste caso – a novidade não consiste apenas numa alteração do regime de sancionamento da conduta proibida, mas mexe igualmente com a própria definição ou delimitação dessa conduta, o cuidado deve redobrar-se. Com efeito, ao alterar para 10 dias o máximo de droga detida ou adquirida para consumo próprio que se considera agora contra-ordenação, ao mesmo tempo que revoga (artigo 28.º) o artigo 40.º da lei antiga e deixa em vigor, intocadas, as normas ‘velhas’ respeitantes ao tráfico nas suas diversas modalidades, o legislador de 2000» pode ter provocado «desfasamentos sancionatórios indesejáveis (e, muito provavelmente, não queridos)» (xxxvii).

5.9 – «A lei derrogada previa, por ordem decrescente de gravidade, o tráfico (comum, de pequena gravidade e para consumo), o consumo (a aquisição ou detenção para consumo próprio em quantidade superior a três doses médias diárias: n.º 2 do artigo 40.º) e a aquisição ou detenção para consumo próprio até essa porção (n.º 1 do mesmo artigo). A distingui-los – nos pontos em que poderia haver sobreposição de tipos objectivos de ilícito -, um critério de propósito ou intenção para além do dolo, coadjuvado em alguns casos por limites quantitativos de substância ilícita consumida ou traficada. Mantendo aparentemente o critério, i. é: sancionando também como consumo a detenção ou aquisição de drogas para consumo próprio, a Lei n.º 30/2000 estabelece, contudo, um tecto inultrapassável – a quantidade de droga não pode ir além do correspondente a 10 dias de dose média individual. Ficamos, pois, a saber que quem adquirir tal volume de substância para consumo próprio pratica uma contra-ordenação. Mas deixámos de saber como sancionar quem adquirir, também para consumo próprio, 11 doses diárias, calculadas segundo a mesma média. Já não constitui contra-ordenação. Portanto, deve ser crime. Mas que crime, se o reformador [parece ter] revoga[do] expressamente todo o artigo 40.º? A ter deixado o n.º 2 deste artigo, o juiz saberia que se tratava de um crime de consumo mais grave, punível com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias. Mas não. Desapareceu esse preceito que punia como consumidor quem adquirisse ou detivesse para consumo próprio mais de três doses médias diárias de droga, sem limite superior de quantidade. Punir-se-á então como traficante-consumidor? É desde logo impossível, quanto mais não fosse porque a nova lei tão-pouco teve o cuidado de mexer no tecto dos 5 dias aí previsto… e 11 é mais do que 5. Como traficante? O revogado artigo 40.º funcionava como elemento excludente do tipo legal de tráfico. Na sua ausência, deverá ler-se agora o tipo do artigo 21.º, colocando em vez de ‘fora dos casos do artigo 40.º’ a sua nova versão ‘fora dos casos do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000’? Se assim for – e nada há de ilógico nessa substituição -, retorna o problema do tecto dos 10 dias e parece não restar outro remédio ao tribunal senão punir o adquirente de droga para consumo pessoal durante 11 dias como traficante. Claro que deve recorrer à figura do tráfico de pequena gravidade (artigo 25.º); mas talvez seja demasiado que um manifesto descuido da lei nova imponha a passagem de uma simples coima para pena de prisão de 1 a 5 anos… só por uma dose diária individual a mais, medida, ainda por cima, por critérios estatísticos fixados por portaria. O manifesto desajuste da solução encontrada através de um linear processo interpretativo obriga o jurista prudente a procurar ‘deixar bem’ o legislador, explicando que afinal este disse mais do que desejava. Com efeito, não é razoável pensar que uma lei descriminalizadora, benfazeja para o consumidor, pretenda que uns gramas de droga transformem um ‘doente’ a proteger num autêntico traficante, esquecendo-se de salvaguardar situações que a velha lei acautelava. Mais consequente com o espírito do diploma de 2000 será interpretar restritivamente o texto da sua norma revogadora, o artigo 28.º Onde as palavras parecem apontar para um completo desaparecimento do artigo 40.º da lei de 93 (excepto no que diz respeito ao cultivo), deve entender-se que este continua a reger os casos de consumo, aquisição e detenção para consumo não convertidos em contra-ordenações. Por outras palavras: mantém-se incólume […] a ideia segundo a qual a quantidade de droga nunca transforma o consumidor em traficante. De outro modo ainda: tráfico e consumo são, agora também, tipos alternativos; o artigo 40.º, parcialmente revogado, conserva intacta a sua função de delimitar negativamente – através do elemento subjectivo que o caracteriza – o crime de tráfico. Esta proposta de solução, por conduzir a um regime mais favorável ao arguido – a pena não poderá ir além de 1 ano de prisão ou multa até 120 dias – em nada bole com o princípio da legalidade e o seu papel garantístico.» (xxxviii)

5.10 – José de Faria Costa, nas suas «Breves notas sobre o regime jurídico do consumo e do tráfico de droga» (xxxix) «não considerou inteiramente adequada uma tal compreensão» (xl), sobretudo «porque, mesmo depois de muito excogitar, não encontr[ou] uma única razão que tivesse levado o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar» (xli).

5.11 – Todavia, este raciocínio radicará num pressuposto inautêntico: o de que o legislador decidiu despenalizar, irrestritamente, a aquisição e a detenção, para consumo próprio, de drogas ilícitas (xlii). Muito pelo contrário, a Assembleia da República – ao introduzir, no articulado da proposta de lei, a norma que ora consta do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 30/2000 («Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias») – terá mesmo querido, limitando claramente aquele objectivo, evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização (ou seja, a sua despromoção a contra-ordenação) da aquisição e da detenção para consumo próprio, em quantidade que excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, «das substâncias referidas no número anterior».

5.12 – Assim sendo, a única (ou, pelo menos, a melhor) forma de conciliar esse objectivo legal (o de evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização da aquisição e da detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, em quantidade que exceda a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias), com o equívoco texto do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 será – na presunção de «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (artigo 9.º, n.º 3, do CC) – confinar a expressa «revogação» do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93 (xliii) ao contexto do próprio diploma («Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»). Donde que, limitado (xliv) o alcance da sua revogação (pelas disposições conjugadas dos artigos 28.º e 2.º, n.º 2, da Lei n.º 30/2000) ao consumo e à aquisição e detenção para consumo próprio de drogas ilícitas em pequenas quantidades (xlv), o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, assim derrogado, conservará válido e actual o texto remanescente (xlvi):

«1 – Quem cultivar plantas compreendidas nas tabelas i a iv é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Se a quantidade de plantas cultivadas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de cinco dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

2 – Quem, para seu consumo, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas i a iv, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.»

5.13 – Tanto mais que existe uma «boa razão» para «levar o legislador a querer continuar a punir como crime, em função de um critério puramente quantitativo, uma conduta que, com fundamentos vários, decidiu despenalizar»: o perigo de a droga adquirida para consumo próprio, quando superior às necessidades pessoais mais urgentes (as dos 10 primeiros dias), vir a ser «oferecida», «posta à venda», «vendida», «distribuída», «cedida», «exportada» ou, por qualquer título, «proporcionada a outrem».

Ver o resto no documento oficial.

Veja também

Decreto-Lei n.º 257/2009, de 24 de Setembro

Estabelece o regime de derrogações aplicáveis à inscrição, produção, certificação e comercialização de variedades de conservação de espécies agrícolas, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2008/62/CE, da Comissão, de 20 de Junho, que prevê determinadas derrogações aplicáveis à admissão de variedades autóctones e variedades agrícolas naturalmente adaptadas às condições regionais e locais e ameaçadas pela erosão genética, bem como à comercialização de sementes e batata-semente dessas variedades